Herbert Marcuse em Israel

Imagem: Valentin Zaslavski
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*

Marcuse reconheceu a injustiça cometida contra a população árabe autóctone durante a criação do Estado de Israel em 1948

A atual escalada do conflito entre Israel e Palestina, marcada pelo acirramento dos ataques e do genocídio perpetrado por Israel, suscita uma urgência em revisitar as reflexões do filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), integrante da Escola de Frankfurt. Em um contexto histórico que remonta às décadas passadas, a relação complexa entre essas duas “nações” é fundamental para entender as origens e as perspectivas futuras desse conflito.

Herbert Marcuse, um marxista alemão que enfrentou o exílio nos Estados Unidos devido ao regime nazista, construiu sua visão sobre Israel e o sionismo com base em uma sensibilidade política forjada na opressão que ele, como judeu, experimentou durante o período sombrio do Holocausto. A relação de Herbert Marcuse com Israel era, assim, permeada por uma dimensão “emocional” e “pessoal”, moldada pelas cicatrizes do passado.

Ao considerar a fundação do Estado de Israel como uma condição para a solução pacífica do conflito israelo-palestino, Herbert Marcuse reconhecia as injustiças inerentes à criação do Estado judaico. Sua perspectiva, expressa nas décadas de 1960 e 1970, ecoava o dilema entre a ilegitimidade histórica da fundação de Israel e a necessidade pragmática de garantir a segurança dos judeus frente a um mundo hostil.

A entrevista concedida por Marcuse ao jornal The Jerusalem Post em janeiro de 1972, preservada no Marcuse Archiv de Frankfurt, proporciona uma janela para a profundidade de suas reflexões. Traduzida para o árabe, a entrevista provocou um intenso debate, evidenciado nas palavras do então prefeito de Nablus (1963-1969) [atual Cisjordânia], Hamdi T. Kanaan: “No que me diz respeito, vejo no senhor a primeira personalidade judaica que admite praticamente a grande injustiça cometida contra árabes-palestinos com a criação de Israel e que, ao mesmo tempo, compreende total e logicamente as circunstâncias presentes e futuras nas quais Israel existe e existirá nesta região”.

A década de 1960 foi testemunha da Guerra dos Seis Dias, evento que desencadeou uma reafirmação do poder militar e político de Israel na região. Herbert Marcuse, atento a essa dinâmica, insistia que a liberdade deveria ser disseminada sem adotar formas imperialistas. Em suas palavras, “Só um mundo árabe livre pode coexistir com um Israel livre”. Essa visão, ancorada na experiência de opressão sob o nazismo, refletia a busca de Herbert Marcuse por uma coexistência pacífica entre Israel e os países árabes circundantes (MARCUSE, 1977).

O filósofo propunha a criação de um Estado nacional palestino ao lado de Israel, considerando-o um passo essencial para a coexistência. No entanto, cinquenta anos após suas reflexões, a implementação dessa solução permanece ilusória. A história subsequente é marcada por conflitos intermitentes, negociações frustradas e uma persistente ausência de paz duradoura.

A década de 2020, especificamente o ano de 2023, emergiu como um ponto de inflexão nesse contexto histórico. O genocídio israelense, iniciado em outubro, reacendeu as chamas de um conflito que parecia não ceder às tentativas anteriores de resolução. A superioridade militar de Israel, mencionada por Herbert Marcuse como um fator que exigiria uma responsabilidade adicional na busca pela coexistência, agora se manifesta de maneira ainda mais pronunciada.

A história serve como uma narrativa intrincada de tensões, aspirações e desafios. O sonho de Herbert Marcuse por uma “federação socialista dos Estados do Oriente Médio”, onde israelenses e palestinos coexistiriam em igualdade, permanece uma visão distante. Contudo, sua visão continua sendo uma chamada atual à luta pela segurança e liberdade em uma região marcada pela volatilidade histórica. Conforme o filósofo, a coexistência das duas populações não poderá acontecer se uma dessas duas “nações” for suprimida pela outra (LAUDANI & JANSEN, 2004).

Diante do cenário atual, é imperativo que a perspectiva histórica seja incorporada à análise crítica do conflito israelo-palestino. A compreensão das raízes, dos desenvolvimentos e das falhas ao longo do tempo é essencial para orientar futuras tentativas de resolução. As reflexões de Herbert Marcuse, ancoradas em sua própria experiência histórica, oferecem uma bússola moral em meio à complexidade desse conflito de décadas. As assimetrias entre Israel e Palestina, em termos de poder militar, político e econômico, são acentuadas nesse contexto, enfatizando a necessidade de abordagens que considerem a justiça histórica e as desigualdades presentes.

A premonição de Marcuse

O ano de 1971 representou um marco na vida de Herbert Marcuse, quando ele, convidado a fazer conferências na Universidade Hebraica de Jerusalém, visitou Israel pela primeira vez. Esse evento permitiu que ele se confrontasse diretamente com a complexidade da questão palestina, dialogando com a população local, tanto árabe quanto israelense. A entrevista resultante, publicada no The Jerusalem Post em 2 de janeiro de 1972, adiciona uma camada importante às reflexões de Herbert Marcuse.

Nessa entrevista, Herbert Marcuse reconheceu a injustiça cometida contra a população árabe autóctone durante a criação do Estado de Israel em 1948. Ele destaca que a fundação do Estado judaico implicou a transferência, em parte forçada, da população palestina. Além disso, a população árabe que permaneceu em Israel viu-se relegada a um status econômico e social de cidadãos de segunda classe, apesar dos direitos formalmente reconhecidos.

A análise de Herbert Marcuse, fundamentada na perspectiva histórica, destaca que as origens do Estado de Israel não diferem fundamentalmente da criação de outros Estados na história, envolvendo conquista, ocupação e discriminação. Mesmo a aprovação da Organização das Nações Unidas (ONU), embora tenha ratificado de fato a conquista, não alterou a essência da situação, visto que o ato político que resultou na criação de Israel foi respaldado pelas grandes potências da época.

O filósofo abordou a precariedade da solução militar e a necessidade de um tratado de paz com a República Árabe Unida [Egito] como uma condição preliminar. Ele propôs uma retirada das forças israelenses do Sinai e da Faixa de Gaza, com a criação de uma zona desmilitarizada sob a proteção da ONU. Herbert Marcuse acreditava que a potência mais forte, representada por Israel, poderia fazer concessões importantes para alcançar a paz.

Jerusalém, com sua carga religiosa profunda, era identificada por Herbert Marcuse como um possível obstáculo à paz. Ele sugeriu a internacionalização da cidade, uma vez reunificada, como uma alternativa. O teórico também via a necessidade de uma “solução justa para o problema dos refugiados”, conforme as resoluções da ONU.

Herbert Marcuse abordou duas possibilidades para lidar com o problema dos refugiados: o retorno à Israel daqueles que desejam voltar, limitado pela transformação das terras árabes em terras judaicas; e a criação de um Estado palestino nacional ao lado de Israel, decidido por meio de um plebiscito supervisionado pela ONU.

A questão central, segundo Herbert Marcuse, era se Israel, em sua configuração à época e com sua política presente, poderia alcançar seu objetivo de existir como uma sociedade progressista com relações pacíficas com seus vizinhos. O filósofo argumentava que a anexação de terras, qualquer que seja a forma, seria uma resposta negativa, transformando Israel em uma fortaleza militar, tornando-se um ambiente hostil.

Em suma, a visão de Herbert Marcuse, moldada pela experiência histórica e pela visita a Israel em 1971, destaca a necessidade de reconhecer as injustiças do passado, negociar tratados de paz fundamentais e buscar uma coexistência genuína entre israelenses e palestinos. Suas palavras, embora pronunciadas décadas atrás, ecoam de forma poderosa na contemporaneidade, oferecendo uma orientação valiosa para a resolução do conflito israelo-palestino.

Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

Referências


Laudani, R., & Jansen, P. E. (2004, 1 de abril). Marcuse, o sionismo e os judeus. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponivel em: https://diplomatique.org.br/marcuse-o-sionismo-e-os-judeus/

Le Monde Diplomatique. (2004, março). Une pensée prémonitoire: Marcuse, Israël et les Juifs. Le Monde Diplomatique, p. 27.  Disponivel em: https://www.monde-diplomatique.fr/2004/03/MARCUSE/11079

MARCUSE, Herbert. Das Ende der Utopie (1967), Frankfurt a. M., Neue Kritik, 1980.

MARCUSE, Herbert. Only a Free Arab World Can Co-exist with a Free Israel, introdução à edição hebraica de “L?Chayim, vol. IV, n° 2, 1977.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Ladislau Dowbor Ronald León Núñez Vanderlei Tenório Marilia Pacheco Fiorillo Érico Andrade Flávio R. Kothe Celso Frederico Jorge Luiz Souto Maior João Sette Whitaker Ferreira Yuri Martins-Fontes José Luís Fiori Luis Felipe Miguel Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Atilio A. Boron Leonardo Boff José Geraldo Couto Manuel Domingos Neto Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Marcelo Guimarães Lima Paulo Sérgio Pinheiro Priscila Figueiredo João Carlos Loebens Bruno Fabricio Alcebino da Silva Boaventura de Sousa Santos Claudio Katz Marcos Silva Leonardo Sacramento Osvaldo Coggiola Rodrigo de Faria Marcus Ianoni Annateresa Fabris Liszt Vieira Dênis de Moraes Paulo Martins Daniel Brazil João Paulo Ayub Fonseca Anselm Jappe João Lanari Bo Francisco Fernandes Ladeira Alexandre Juliete Rosa Dennis Oliveira Jean Pierre Chauvin Paulo Fernandes Silveira Eugênio Bucci Heraldo Campos Tarso Genro Mário Maestri Alexandre de Lima Castro Tranjan José Machado Moita Neto Gilberto Lopes Bento Prado Jr. Marilena Chauí Milton Pinheiro Rafael R. Ioris Andrew Korybko Marjorie C. Marona Kátia Gerab Baggio Tales Ab'Sáber Henry Burnett Airton Paschoa Daniel Costa Flávio Aguiar Gabriel Cohn Eliziário Andrade Chico Whitaker Bruno Machado Samuel Kilsztajn Lucas Fiaschetti Estevez Armando Boito Eugênio Trivinho Antônio Sales Rios Neto Paulo Nogueira Batista Jr Antonio Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Andrés del Río Michael Roberts Sergio Amadeu da Silveira Vinício Carrilho Martinez Caio Bugiato Gilberto Maringoni Michael Löwy Manchetômetro Ronald Rocha Jean Marc Von Der Weid André Singer Sandra Bitencourt Carla Teixeira Mariarosaria Fabris Daniel Afonso da Silva Luciano Nascimento Fábio Konder Comparato Maria Rita Kehl Juarez Guimarães Slavoj Žižek Walnice Nogueira Galvão Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre de Freitas Barbosa José Raimundo Trindade Lorenzo Vitral Rubens Pinto Lyra Jorge Branco Henri Acselrad Leda Maria Paulani Ricardo Abramovay Elias Jabbour Tadeu Valadares Otaviano Helene Marcos Aurélio da Silva Eleonora Albano Fernando Nogueira da Costa Salem Nasser Luiz Marques Luiz Eduardo Soares Chico Alencar Luiz Renato Martins Luís Fernando Vitagliano Everaldo de Oliveira Andrade José Micaelson Lacerda Morais Alexandre Aragão de Albuquerque Afrânio Catani Francisco Pereira de Farias Celso Favaretto Igor Felippe Santos André Márcio Neves Soares Carlos Tautz Ricardo Musse João Carlos Salles Valerio Arcary Luiz Roberto Alves Luiz Bernardo Pericás Michel Goulart da Silva Renato Dagnino Bernardo Ricupero Luiz Carlos Bresser-Pereira João Adolfo Hansen Eleutério F. S. Prado Lincoln Secco Luiz Werneck Vianna Vladimir Safatle Leonardo Avritzer José Dirceu Ricardo Fabbrini Denilson Cordeiro João Feres Júnior Marcelo Módolo Gerson Almeida Eduardo Borges Berenice Bento Thomas Piketty Alysson Leandro Mascaro Ari Marcelo Solon Antonino Infranca Paulo Capel Narvai Fernão Pessoa Ramos Julian Rodrigues Ronaldo Tadeu de Souza Remy José Fontana Benicio Viero Schmidt

NOVAS PUBLICAÇÕES